cultura

As estranhas belezas da vida (singularidades de repetições irrepetíveis)

Leo Roat

Lá estou eu mais uma vez em um processo de ensaios. E serei sincero, apesar do frio na barriga de como será o espetáculo em contato com o público, amo este momento de criação e repetições.

Acredito que muito pelas reflexões que ele me causa na vida como um todo, e não somente na parte criativa. É obvio que sempre analisamos e agimos em nossas vidas a partir de filtros que conscientemente ou inconscientemente nos compõem. E que todos teremos olhares diferentes em distintas situações da vida.

Mas gostaria de compartilhar aqui com vocês um pouco de como algo rotineiro, e muitas vezes repetitivo e exaustivo (física e mentalmente), pode gerar emoções e profundas modificações em nossas vidas. Obviamente, se tivermos olhos abertos e ouvidos atentos para o que muitas vezes chamo das estranhas belezas da vida.

O tema dessa coluna veio na volta de um ensaio (não poderia ser diferente).

Foi no trajeto para casa que me peguei pensando na frase de um amigo, ele questionava algumas rotinas da vida e do trabalho dele.

Só para deixar claro que, esse amigo em questão, não está no espetáculo e não tem envolvimento com teatro. Ele trabalha em outra área. E foi, justamente isso, que me motivou a escrever a "carta" que vocês lerão (e espero que ele também).

Ele falou: "Depois de um tempo tudo parece igual, tenho a sensação da repetição e de não sair do lugar. E as únicas coisas que se sobressaem, muitas vezes, são as coisas ruins ou as tensões. Talvez para vocês do teatro, ao fazer um espetáculo, seja diferente, não sei".

Ao ouvir suas falas, e esta última frase em específico, acho que não soube responder nada na hora. Nem me lembro se disse algo pertinente na conversa. Mas ela me marcou. E de algum modo, quero deixar aqui minha resposta para ele e para todos que talvez estejam pensando algo parecido nesse momento de suas vidas.

Caro Amigo,

Pensei sobre sua frase e ela me levou a refletir sobre os detalhes de como a rotina diária pode nos anestesiar. De como podemos nos enganar de que as coisas são imutáveis. Ainda mais em momentos de crises. No teatro é assim também. Só que o teatro também ensina que a vida (e o próprio teatro) não é somente assim.

Ele me ensinou que o que soa repetitivo é na verdade único e efêmero. Tudo é singular. Parece confuso, eu sei. Mas deixe-me explicar. Gostaria de te dizer que essa sua primeira percepção do estado das coisas já é de grande valia. Muitas vezes o que na arte nos leva a um processo de criação, é exatamente uma percepção semelhante à sua. De querer fazer algo para transformar o que já está posto. Mesmo que não saibamos como, ou não nos sintamos preparados para fazer o que nem entendemos que devemos fazer.

Esse é o primeiro passo para, quem sabe, realizar pequenas mudanças. E falo das pequenas mesmo, das quase imperceptíveis. Não pense nas grandes modificações. Um espetáculo é feito de minúsculas partes, criado coletivamente cena após cena na rotina dos ensaios. Acredito, talvez, que ao longo deste texto compreenderás melhor o que tento dizer.

Antes de termos um espetáculo "apresentável", e de realizar o encontro com o público, temos que percorrer esse estranho, e por muitas vezes assustador, caminho de criação (e repetição) que se manifesta na forma de ensaios.

Acredito que você não tenha participado de um processo desses (pelo menos não na íntegra), e que tenha alguns imaginários comuns com as pessoas que não fazem disso o seu dia a dia.

Claro que existem dias fabulosos, em que todas as coisas acontecem, a energia flui e todo o trabalho dá certo. Como no seu trabalho também. Mas, isso é a minoria dos dias. Assim como na maioria dos trabalhos. (Acho que não é assim na vida?)

Nos demais dias é preciso: trabalhar, acreditar no processo, trabalhar mais um tanto, ter resiliência, e? Repetir.

Soa cansativo e exaustivo como qualquer trabalho, e o é. Em um dia de ensaio corriqueiro todos os atores vão chegando um a um. Prontos para repetir, mas também prontos para o belo estranhamento que surge a todo instante.

Todos os dias eles entram no espaço de ensaio, exatamente como você chega no seu trabalho. Sim, é um trabalho diário, de algumas boas horas (mesmo que muitos pensem que é apenas hobby ou atividade de finais de semana).

Soltam suas coisas em um canto da sala. Alguns trocam de roupa, outros já vem prontos para o processo. Exatamente como você e seus colegas vão para seus trabalhos.

Se cumprimentam. Trocam palavras sobre fatos que ocorreram no dia ou na noite passada, ou puxam conversa sobre algum absurdo que esteja acontecendo neste momento. Até a hora de "efetivamente" trabalhar.

Essa troca de ideias e palavras já traz nuances de como estão as coisas. Já carrega em si uma estranha força singular. Podem parecerem iguais, mas não são iguais.

Mesmo que ali pareçam que só estejam falando amenidades.

Muitas vezes os assuntos são sérios, muitas vezes leves. Outras tantas, não se fala quase nada.

O início de um dia de ensaio quase sempre é precedido de momentos assim. Igual. E acredito que igual ao dia a dia da maioria das rotinas de um ofício qualquer.

Mas é aqui que já podemos perceber as primeiras belas estranhezas que falo. Elas já dão, em certa medida, como estão os humores, e dicas do que aconteceu e até do que está porvir .

Indicam quem está mais quieto, mais empolgado, etc. E aos poucos o que parecia ser só mais uma conversa, ou um início de ensaio, outro dia qualquer começa a modificar-se.

Um olhar atento para essas coisas indica um caminho para como começar um ensaio. Podemos sair do plano, mantendo o objetivo do nosso dia. E temos imprevistos como todo mundo. De dores no corpo (resfriados e tudo mais), até problemas sérios de última hora.

Apesar disso o trabalho sempre parece o mesmo. Ensaiar. Aquecimentos, concentração, exercícios, leituras, troca de ideias, milhares de tentativas e erros ao fazer uma cena ou parte dela. Tudo isso dia após dia. Por meses a fio, todos os dias.

Toda a vez que vamos montar o espetáculo será isso, independente do processo, método etc. E Seremos inseguros, e confiaremos uns nos outros, tudo parecendo igual. E parecendo igual, montamos espetáculos de temas diferentes, falando de emoções diferentes, em momentos diferentes da vida.

Toda vez o corpo cansará, muitas vezes a cabeça já não estará mais ali, as discussões acontecerão e os ânimos se acirrarão.

Tudo igual todos os dias. Todas as vezes que formos montar um espetáculo.

Sempre acontece de uma cena que parece pronta, parecer errada quando montamos a próxima, e tudo perde o ritmo e o sentido. E lá vamos nós novamente mudar tudo, ou melhor repetir tudo para mudar tudo.

Lá vamos nós repetir para fazer o que já estava feito. E o prazo pra estreia apertando.

E assim a gente faz uma cena, outra e outra. Dia bom, dia ruim. Dia que passa rápido, dia que demora a passar. Dia que nos perguntamos porque está tudo igual? Porque escolhi fazer isso da vida?

A questão é que na montagem de algo, o que aprendemos é perceber a olhar detalhes, pequenas mudanças que mostram que nada, nunca na verdade está se repetindo.

E essas "repetições" só deixam as coisas melhores, justamente porque nos permitem fazer diferente.

Em todo dia de ensaio. Em todo dia de repetir. Em todos os dias, as pessoas estão diferentes, mudam, reagem aos fatos da vida. Não somente ali, mas fora daquele espaço também. E por mais que tudo seja semelhante, é perceptivelmente distinto, estruturalmente diferente. É assim no teatro, é assim em outros trabalhos é assim na vida.

O que quero lhe dizer, caro amigo, é que o teatro me ensinou a olhar as estranhas belezas da vida que acontecem a todos os segundos. Claro que não veremos todas. Mas as que saltam aos nossos olhos, nos abrem o apetite para viver, pois modificam tudo.

Será a partir de uma pequena repetição, do que sempre parece igual, é que mudaremos o nosso chão, e faremos o nosso lugar ser o diferente, único e singular.

E assim, o que se repete será o irrepetível, e o efêmero será eterno.

Do seu Amigo,
Leo.

Até o próximo encontro.

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